Mariana Ortiga
Maria Aparecida Caitano é a primeira pessoa negra a assumir o cargo de juíza de segundo grau do Tribunal Regional do Trabalho catarinense, e encanta pela simplicidade e simpatia
Esqueça aquela imagem de pessoa fechada, quase inatingível, que vem à cabeça quando o assunto são os magistrados. Só depois disso é que se pode falar sobre Maria Aparecida Caitano.
Aos 64 anos, a mulher que foi a primeira pessoa negra a assumir o cargo de juíza de segundo grau na mais alta corte trabalhista catarinense, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT), é capaz de contrariar, graças à insistência do sorriso, qualquer conceito preconcebido a respeito da sisudez da classe. Aliás, desfazer preconceitos parece um dom nato de Maria Aparecida.
Nascida no Paraná, estado escolhido pelos avós maternos para viverem após fugirem da escravidão em Minas Gerais, ela foi morar com os pais na cidade de São Paulo aos dois anos de vida. No Sul, ambos eram agricultores. No Sudeste, se viravam como podiam. O pai foi motorista, pedreiro e carpinteiro. A mãe, cozinheira.
Embora Maria Aparecida tente fugir do discurso que inclui condições financeiras, cor ou gênero e evite valer-se de situações adversas vividas com a intencional prudência de não supervalorizar sua trajetória, é impossível não atentar para a perseverança da estudante que dividia os livros com afazeres domésticos, compartilhados com pai e irmão. Isso porque a mãe voltava do trabalho para a casa apenas nos fins de semana.
Com bolsas de estudo, Maria Aparecida frequentou colégios particulares nos ensinos médio e fundamental. Antes de chegar ao curso de Direito da Universidade de São Paulo (USP), foi professora do magistério.
– Gostava muito de dar aula. Escolhi a faculdade para ampliar conhecimentos, nunca pensei em ser juíza – comenta.
Focada, queria mesmo era seguir o que chama de carreira intelectual. Não foi à toa que recusou o convite de um assistente do estilista Dener para ser modelo do brasileiro, que fez história na moda do país na década de 1960.
Apesar de não lembrar com exatidão, arrisca que o convite para os desfiles ocorreu em uma festa quando ela era universitária, aos 24 anos, medindo 1,70m de altura e pesando 47 quilos.
Pouco holofote, muito livro
Se a aparência era mesmo de modelo, os objetivos estavam bem longe das passarelas. Após formada, chegou a advogar com Almir Pazzianotto, que já foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Maria Aparecida também foi oficial de Justiça do Trabalho. Foi aí que resolveu voltar aos livros para prestar concurso para juíza da mesma área.
– Formei um grupo de estudos com colegas e, em três anos, vieram os resultados. Quando passei para juíza do Trabalho no Pará, em 1986, fui morar lá porque meu irmão, que é delegado aposentado da Polícia Federal, vive naquele Estado. Mas passei no concurso de Santa Catarina poucos meses depois e acabei optando por aqui – lembra, ao narrar a trajetória nos Tribunais de justiça.
A opção levou em conta a definição das estações. O calor excessivo do Pará não fazia bem para sua mãe.
Apesar de se dizer adaptada em terra catarinense, que conhece bem por causa da profissão, que exigiu viagens pelo Estado, três anos de moradia em Caçador e outros três em Jaraguá do Sul, Maria Aparecida confessa não esquecer da alegria do “povo do Norte”.
Alegria que é a mesma que une à capacidade de meritíssima e à simplicidade de Cida, como é conhecida entre amigos e familiares, para levar a vida dentro e fora dos Tribunais.
Longe do trabalho, perto da arte
Maria Aparecida Caitano também quebrou a barreira da cor na primeira instância da Justiça do Trabalho catarinense. Para ela, o fato de haver poucos negros ocupando cargos importantes está relacionado ao difícil acesso à educação de qualidade. E é justamente no investimento em educação e na maior valorização da família que aposta como saídas para o que julga ser o maior problema do mundo hoje: a banalização da vida.
– Acho que o desemprego também será sempre uma pedra no sapato do trabalhador, principalmente devido à rápida evolução tecnológica. Não deixo de pensar, no entanto, na violência. Culpa-se a miséria, mas há uma desintegração da família e uma consequente inversão de valores que precisam ser levadas em conta – avalia.
Católica que foi, inclusive, catequista, Maria Aparecida fala ainda na espiritualização independente de credo. Ela diz que faltam crenças que façam o ser humano perceber que o objetivo da vida não pode se restringir à aquisição de bens materiais. Comedida, a mulher que diz ser a injustiça o que lhe tira do sério, quando perguntada se enfrentou preconceito ao longo da vida, responde que sim, mas de forma tão velada que, caso contasse, “as pessoas poderiam considerar que viu discriminação onde não existiu”.
Longe do papo reflexivo e do trabalho em seu gabinete, Maria Aparecida divide o tempo entre ouvir música, assistir a filmes e ler livros. O CD de Maria Bethânia com a cantora cubana Omara Portuondo é um dos mais cotados de sua estante atualmente. Se falar sobre compositores favoritos, além de Chico Buarque, elenca três Paulos: César Pinheiro, da Viola e Vanzolini.
Admira os filmes brasileiros, mas cita um francês como o último que assistiu e indicaria, chamado O Segredo do Grão. Na literatura, o Nobel de economia Amartya Sen tem destaque. Ela chega a citar uma frase dele que diz “Lutar já é uma forma de vencer”.
Por trás da filha, irmã, tia, juíza e intelectual, há outra Maria Aparecida. A vaidosa, que justifica os sorrisos dizendo que considera os dentes o que há de mais belo em seu rosto e pede, em tom de brincadeira, que a reportagem “dê uma arrumadinha nas fotos”. Coisas de quem, mesmo sem esquecer a toga, não dispensa o batom e os brincos.
Fonte: Diário Catarinense