Para o jurista, legislação promoveu cidadania e deu bases para desenvolvimento econômico do Brasil
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) completou, na segunda-feira (1º), 80 anos. Foi em 1º de maio de 1943 – durante o Estado Novo – que o então presidente Getúlio Vargas assinou o projeto final da CLT. “O trabalhador brasileiro possui hoje seu código de direito, a sua carta de emancipação econômica, e ele sabe perfeitamente o que isso vale”, disse Getúlio ao discursar naquele dia no estádio de São Januário, no Rio de Janeiro.
Marcar a passagem do tempo e celebrar a data é uma oportunidade de lançar um olhar ampliado para esse instrumento que, desde o seu nascimento, gerou e gera reflexos diversos sobre o Brasil. A CLT não está no passado, está no presente. E é, na visão do ministro Mauricio Godinho Delgado, do Tribunal Superior do Trabalho, o instrumento em que, pela primeira vez, os trabalhadores são sujeitos da História.
Nascido em Lima Duarte (MG), magistrado do trabalho há mais de 30 anos, ele é um dos mais respeitados juristas do Brasil. Doutor em Filosofia do Direito e mestre em Ciência Política pela UFMG e bacharel em Direito pela UFJF, é autor de dezenas de livros, entre eles o “Curso do Direito do Trabalho”, na 20ª edição, obra essencial aos estudiosos desse ramo. Nessa entrevista sobre os 80 anos da CLT, o ministro faz uma análise histórica sobre o trabalho no Brasil, percorre a construção do arcabouço legal sobre o tema e analisa os impactos da CLT sobre a sociedade, a economia e o desenvolvimento do país. Também comenta os desafios presentes e futuros da legislação.
Secom/TST: Como surgiu a CLT e o que ela representou, quando implementada, em 1943?
Godinho Delgado: O Brasil, nessa época, tinha uma história de 430 anos de uma tradição em que o trabalho não era respeitado. Tivemos, por quase quatro séculos, um sistema escravagista, que tem uma peculiaridade pouco apontada: o Estado tem de ser autocrático para existir a escravidão, mesmo que se diga democrático. Para ser mantida a escravidão, é preciso privar de liberdade uma parcela significativa da população, e, portanto, trata-se de uma sociedade baseada na força, na violência e no desrespeito ao trabalho e ao trabalhador. Essa tradição histórica perdurou desde 1500.
“A marca da escravidão na nossa sociedade gerou um desrespeito ao trabalho muito forte, que não era só do Estado autocrático, era também da sociedade civil.”
Secom/TST: A Proclamação da República trouxe alguma transformação?
Godinho Delgado: A República veio com promessa de ares novos, mais libertária do que o período imperial, que foi quase de escuridão. Quando terminou o Império, conforme o Censo de 1890, tínhamos 87% de analfabetos, inclusive nas elites. A República melhorou essa situação, mas não há, na Constituição de 1891, alusão ao Direito do Trabalho. Havia leis federais esparsas e leis estaduais em estados com maior número de trabalhadores urbanos e parcela rural importante, como São Paulo. Mas havia muito preconceito em relação ao trabalho e ao trabalhador. O presidente Epitácio Pessoa presidiu a delegação brasileira no Tratado de Versalhes, que fechou a Primeira Guerra Mundial e criou a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Até 1930, a OIT aprovou cerca de 33 convenções internacionais. Quantas foram ratificadas pelo Brasil? Nenhuma. A Primeira República não tinha apreço pelo trabalho.
Secom/TST: Nesse período, no mundo todo, o movimento operário ganha relevância. Isso contribuiu para a construção de um Direito do Trabalho no Brasil?
Godinho Delgado: O movimento operário começou a se organizar durante a Primeira República, mas sempre submetido a forte repressão. A Revolução de 1930 mudou muita coisa.
Tinha defeitos, mas também teve qualidades. A narrativa dominante foca muito no defeito, como o autoritarismo. Mas Vargas também impulsionou a urbanização brasileira, criou uma política de proteção do café com incentivo aos cafeicultores, mas também iniciou uma diversificação na área rural e incentivou a industrialização. Ele precisava de novos aliados, porque estava derrubando uma aliança de 110 anos, e foi aí que se construiu uma política pública clara, com o discurso de afirmação do trabalho, pela primeira vez na história do país. E isso é muito importante, porque todos somos trabalhadores em sentido amplo. Então, desmoralizar ou negligenciar o trabalho é ofender a todos que vivem do próprio trabalho.
Secom/TST: O que essa política de valorização do trabalho representou?
Godinho Delgado: Foi criado um sistema trabalhista sofisticado, uma legislação que cria direitos e regras de funcionamento do contrato, um sistema sindical que, embora tivesse o defeito de ser vinculado ao Estado, pela primeira vez dava espaço nas políticas públicas a essas pessoas, com quem o presidente dialogava. Contudo - e isso tem de ser criticado - ficaram de fora a população do campo e os trabalhadores domésticos, como concessões de Vargas ao pacto político do passado.
Mas os impactos dessa política são fundamentais. Tanto é que o modelo econômico, social e institucional criado nos anos 1930 produziu efeitos por 50 anos no Brasil, até 1982. E, nesse período, o país foi um dos que mais cresceu no planeta. Esse modelo tinha como base a inclusão dos trabalhadores por meio de uma legislação e de um sistema trabalhista, do qual faz parte a Justiça do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e os sindicatos.
Secom/TST: Quais os efeitos desse instrumento naquele momento e ao longo dos últimos 80 anos?
Godinho Delgado: Pela primeira vez, os trabalhadores passaram a ter cidadania e a ser sujeitos da História. A CLT reuniu toda a legislação sobre o tema de forma sistemática e sintetizou essa época em cerca de 920 artigos. É um diploma amplo e que tem cumprido papel importante, ajudada pela Constituição da República de 1988, que foi a que mais respeitou, elogiou, homenageou e fortaleceu as pessoas que vivem do trabalho e teve uma visão ampla, nesse contexto.
Secom/TST: A CLT favoreceu o desenvolvimento econômico do Brasil?
Godinho Delgado: Eu não tenho a menor dúvida de que a CLT deu bases para o desenvolvimento econômico do Brasil. Como o sistema capitalista funciona? As empresas produzem um bem ou serviço, mas alguém tem que consumir isso. E o primeiro grande mercado em países grandes é a própria população. O crescimento da indústria no Brasil foi muito acelerado exatamente porque havia uma política pública de inclusão, a política trabalhista.
Secom/TST: E para os empregadores?
Godinho Delgado: Uma legislação que instigue o empresário a transformar o trabalhador em um ser econômico e profissional incentiva a atividade econômica. Governo que não tem proteção social e acha que política econômica é uma coisa neutra vai adotar remédios errados e desequilibrados. É preciso que se gere emprego de qualidade, e não apenas números. Se a pessoa ganha menos de um salário mínimo, ela pode estar estatisticamente empregada, mas é preciso uma massa de consumidores reais, com capacidade de consumo, e isso vai gerar retorno para as empresas. Esse retorno não é direto, mas ocorre de forma global, em que todos se fortalecem.
Secom/TST: O que precisa ser aperfeiçoado na legislação?
Godinho Delgado: A CLT, no passado, tinha dispositivos que fortaleciam sindicatos, instituição cujo papel é o de atender aos trabalhadores, com assistência judiciária gratuita. Mas a reforma trabalhista fragilizou os sindicatos, que hoje não têm como manter um corpo jurídico forte e viram sua capacidade de assistência judiciária reduzida. Ela também tornou caro acionar a Justiça, criando uma série de despesas novas, com a ideia de que a pessoa, ao entrar na Justiça, está agindo de má-fé. Essas medidas tornaram o processo trabalhista arriscado, e esse conjunto de fatores precisa ser aperfeiçoado.
Secom/TST: Com o avanço do trabalho por plataformas digitais e a flexibilização das relações de trabalho, estamos em um ponto de inflexão?
Godinho Delgado: Estamos vivendo uma fase parecida com outras. Claro que a tecnologia sepulta muitas formas de trabalho, mas cria outras profissões e outras necessidades. O que existe hoje é uma tecnologia específica, sofisticada, a partir da computadorização e dos chamados algoritmos, direcionados para objetivos bem específicos. E vivemos uma fase em que, para uma corrente ideológica, direitos sociais são considerados despesas injustificáveis, populismo, demagogia, irresponsabilidade. Acontece que são eles que permitem a maior afirmação do ser humano no sistema econômico. A sociedade vai ter de escolher se quer ter trabalho precarizado ou regulado, mas o regulado é o que gera direitos, e isso não é incompatível com o funcionamento do sistema. Trata-se, portanto, mais de uma escolha do que um empecilho tecnológico.
Texto: Natália Pianegonda (Secom/TST). Fotos: Fellipe Sampaio (Secom/TST)
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