por José Lucio Munhoz*
Mais um relatório anual do “Justiça em Números” confirma o que os juízes sentem diariamente em suas mesas: aumenta mais uma vez o número de processos judiciais. São mais de 28 milhões de novos processos por ano, com 93 milhões de ações acumulando no aguardo de julgamento. É como se metade da população brasileira tivesse um processo no Judiciário.
Como os próprios números demonstram, o acesso ao Judiciário é bastante facilitado no Brasil. No entanto, o exercício desse direito não é feito com a qualidade que se espera. Com 25 milhões de sentenças ao ano – uma das maiores produções de julgamentos do mundo! – só o julgamento desses casos já represados demorará cerca quatro anos. E justiça que tarda, todos sabemos, descumpre com a própria definição desse substantivo.
Para que o serviço jurisdicional seja de qualidade é indispensável que se diminua o número de processos em tramitação, pois só assim cada caso receberia maior e mais rápida atenção dos juízes e servidores. Mas não seria uma contradição garantir o amplo acesso ao Judiciário e ao mesmo tempo visar a diminuição da quantidade de processos?
É evidente que aquele que tem seus direitos prejudicados dentro da sociedade deve encontrar um caminho livre e facilitado para buscar sua reparação dentro do sistema de Justiça. A porta deve estar aberta a quem sofre violação em seus direitos. E isso, creio, é bastante eficaz na atualidade.
O que se deve fechar, no entanto, é a escancarada porteira existente no Judiciário que trata com complacência (ou mesmo com estímulo!) aos que descumprem as leis. O juiz não deve ser “justiceiro”, mas a sua mão deve pesar em face daquele que utiliza o carregado sistema de Justiça para simplesmente retardar ou deixar de cumprir obrigação legal incontroversa.
Sabemos que o juiz deve ser acionado para “dizer” o direito. No entanto boa parte das vezes não há, em verdade, qualquer litígio entre as partes. Há, sim, mero descumprimento do dever legal de uma parte, com alegações de defesa desprovidas de um mínimo de razoabilidade, veracidade ou plausibilidade. É o famoso “devo, mas dentro do processo eu nego”.
E depois de se movimentar recursos do credor – advogado, documentos, testemunhas – e boa parte da máquina judiciária – audiências, diligências, intimações, decisões judiciais -, na maior parte das vezes (e muito tempo depois!) o devedor é condenado apenas no pagamento daquilo que já se sabia ser de sua obrigação. Isso, ainda, quando essa vinda ao Judiciário não lhe sai mais barato, pois algumas vezes lhe é permitido um acordo por menos do que devia, tem parcelado o pagamento, lhe são dadas isenções, etc.
O grande número de ações judiciais, portanto, não segue aumentando somente pela facilidade concedida ao cidadão de ingressar no Judiciário, mas sim pela complacência com que este, em boa medida, trata o descumpridor da lei, estimulando na sociedade a repetição das atitudes contrárias ao direito – geradoras, consequentemente, de novos processos.
Como se esperar que o mau empregador que não paga as horas extras mude seu “hábito”, se quando é chamado ao juízo lhe é permitido um acordo por menos do que realmente deve, de modo parcelado, sem honorários advocatícios ou custas, com correção monetária menor que a devida e, ainda, com parcelamento ou isenção de tributos?
Também no juizado cível sua vida é facilitada quanto aos acordos e igualmente sem honorários advocatícios. Quantos são os relatos de não pagamento de aluguéis em que o devedor permanece anos ainda usufruindo – e deteriorando – o imóvel?
Algumas grandes empresas são “clientes” contumazes do Judiciário e continuam a operar normalmente, repetindo as mesmas condutas que geram milhares de processos, tudo recebido com complacência pelo magistrado. Assim se perpetua o “devo, enrolo e vou levando…” do mesmo modo em que ações judiciais são intentadas diariamente, em verdadeira aventura jurídica, mesmo contra expresso comando legal ou jurisprudência consolidada, no não menos famoso “vai que cola…”.
A tão pretendida busca pela efetividade das decisões judiciais passa obrigatoriamente pelo fim da sensação da impunidade, e esta, nos parece bem claro, não deve se restringir apenas à seara penal. Mecanismos para se mudar essa percepção existem aos montes nas leis e códigos (litigância de má-fé, multas, fixação de dano moral, etc), basta que o juiz assuma essa responsabilidade, que é sua.
* José Lucio Munhoz é Juiz Titular da 3ª Vara do Trabalho de Blumenau, SC, mestre em Direito pela Universidade de Lisboa, bacharel pelo Mackenzie, foi Conselheiro do CNJ na composição 2011/2013, Vice-Presidente da AMB em 2008/2010 e Presidente da AMATRA-SP em 2004/2006.
Fonte: Justificando.com