Regra do CNJ para casamento homoafetivo é acertada

Por José Lucio Munhoz*

27/05/2013 13h10

Embora na grande maioria das vezes tenhamos votado no mesmo sentido, eu e o ministro Joaquim Barbosa temos uma visão bastante antagônica em alguns temas pontuais, em especial a respeito do funcionamento do Poder Judiciário e da magistratura, princípios democráticos e atribuições do próprio Conselho Nacional de Justiça.

No entanto, uma das propostas de sua excelência que teve o meu apoio e o da integralidade dos meus colegas de bancada, à exceção de um voto, foi a proposta da Resolução 175, que proíbe os cartórios de recusar o registro da união estável, conversão dela em casamento e o ato deste próprio, para as pessoas de mesmo sexo.

Não só a proposta é adequada e necessária, quanto devidamente legal, ao menos no entendimento deste subscritor e certamente dos demais conselheiros que acompanharam a proposta (dois representantes do Congresso Nacional, dois do Conselho Federal da OAB, dois do Ministério Público, dois juízes, três desembargadores e o próprio presidente do órgão e do STF). Entre os conselheiros temos mestres, doutores, autores e professores de Direito Constitucional, Civil, Processo Civil e Administrativo. Muito embora seja evidente que suas decisões possam vir a ser, vez ou outra, consideradas ilegais e objeto de controle e revisão pela Suprema Corte, não podemos negar que o CNJ compõe um quadro, digamos assim, qualificado e plural.

Ouso afirmar, a partir de minhas reflexões, que no caso específico bem andou o CNJ. Todos sabemos que a atuação do conselho se dá exclusivamente em matéria administrativa, sendo-lhe vedado intervir na seara jurisdicional. E entre as ações administrativas vinculadas ao Poder Judiciário se encontram, sem sombra de dúvidas, as atuações dos Cartórios de Registro.

Não há dispositivo constitucional algum que proíba o casamento entre pessoas de mesmo sexo, muito embora a Constituição tenha previsto — como então de hábito —, que a união estável entre “homem e mulher” deveria receber a proteção do Estado e ser reconhecida como “entidade familiar”, devendo ser facilitada sua conversão em casamento (artigo 226, parágrafo 3º).

Com base nos princípios constitucionais de igualdade e vedação de discriminação, o próprio Supremo Tribunal Federal, na ADI 4.277, reconheceu como possível e constitucional a união estável, no sentido de dar interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”. Convém lembrar, nesse tema, que constitui objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, além da promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo ou qualquer outra forma de discriminação (CF, artigo 3º, I e IV).

Pelo mesmo raciocínio a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça também já reconheceu jurisdicionalmente o direito ao próprio casamento, por duas mulheres do Rio Grande do Sul.

Quando se interpretam os dispositivos constitucionais que garantem ao cidadão o reconhecimento de sua dignidade como ser humano e o pleno exercício de seus direitos de cidadania em igualdade e sem discriminação de qualquer natureza, isso já nos levaria a admitir com certa facilidade a possibilidade das pessoas registrarem, perante os órgãos públicos, a natureza de seus relacionamentos para a preservação de direitos ou mesmo para certificar aspectos de sua vida privada.

Todavia, mais que isso, a Constituição Federal, de 25 anos atrás, já escreveu com todas as letras que todos são iguais perante a lei e sem distinção de qualquer natureza (artigo 5º) e, ampliando ainda mais tal rol, explicita que os direitos e garantias previstas no texto constitucional não excluem outros decorrentes dos princípios por ela adotados (artigo 5º, parágrafo 2º). Deste modo, ainda que sem prever expressamente tal aspecto da vida cotidiana contemporânea, tal direito se mostra absolutamente compatível com as disposições constitucionais.

Tendo a Suprema Corte decidido que a união estável entre pessoas do mesmo sexo corresponde a uma entidade familiar (circunstância que a própria Constituição Federal estimula seja convertida em casamento — artigo 226, parágrafo 3º) e o STJ já ter admitido como legal o casamento homoafetivo, alguns cartórios passaram a permitir o registro de tais situações, inclusive com regulamentações de algumas corregedorias de Tribunais de Justiça nessa mesma linha, como nos estados do Paraná e Paraíba. Logo, como órgão administrativo máximo do Poder Judiciário, seria salutar que o CNJ padronizasse tal procedimento a nível nacional, até porque a situação de tratamento distinto estava gerando ocorrências inusitadas e de todo não desejadas, como a de pessoas que obtinham o registro em um local e não em outros, de conformidade com a cidade na qual residem.

Além disso, tal negativa de registro administrativo estava a gerar diversas ações judiciais cujo resultado final, pelo panorama interpretativo antevisto das decisões do STF e do STJ, todos já poderíamos prever que seria pelo reconhecimento de tal direito.

Sendo adequada a regulamentação nacional e administrativa pelo CNJ, a medida somente poderia ser pelo reconhecimento da possibilidade de registro das referidas situações, em razão dos tantos princípios constitucionais já indicados e pelas decisões judiciais mencionadas, que estão a orientar o tema com amplitude no âmbito jurisdicional.

Além do tratamento igualitário, a medida permite às pessoas, na esfera de sua liberdade individual e no livre exercício de seu direito de cidadania, estabelecer o regime civil de seus relacionamentos. Com isso preservam-se direitos e permite-se maior segurança nas questões jurídicas das pessoas que fazem tais escolhas para as suas vidas. E isso se faz mais que necessário na atualidade, em razão do garantido direito de adoção, das questões hereditárias, das dúvidas quanto aos benefícios previdenciários, das discussões quanto aos direitos patrimoniais, etc. Em face da maior incidência desses relacionamentos em nossa coletividade, essa circunstância deve ser protegida e resguardada pelo Direito.

Não se pode menosprezar que a felicidade é um preceito indispensável para a plena realização da dignidade da pessoa humana, e todos os regramentos da vida em sociedade devem, num Estado Democrático de Direito como o nosso, na medida do possível, auxiliar na concretude desse primado. Se as pessoas podem livremente realizar suas escolhas pessoais, no âmbito de sua inviolável intimidade e vida privada, por qual razão o Estado ou o Direito poderiam intervir e dificultá-las em sua vontade ou desejo de ser feliz?

Impressiona o quanto têm sido difícil o reconhecimento do pleno exercício da cidadania para as pessoas que optam por relacionamentos fora dos padrões do que pressupõe como “adequados” determinados setores da sociedade. Tais discriminações ou dificuldades não terminaram com a Declaração dos Direitos do Homem pela ONU em 1948, não chegou ao fim com a nossa Constituição Federal cidadã de 1988, não cessaram com o reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo pelo STF em 2011, permaneceram após a decisão do STJ pelo reconhecimento do casamento e voltam a carga agora com a decisão administrativa do CNJ sobre os cartórios, ao impedi-los de negar o registro a tais situações (como, ademais, é garantido a qualquer outro tipo de contrato da vida civil).

Surpreende como o preconceito, mesmo que em menor escala, ainda persiste. Por qual razão, me questiono, alguns segmentos da sociedade teimam em tentar tutelar a vontade e liberdade das outras pessoas, achando que elas devem se portar desta ou daquela maneira? Cada qual, numa verdadeira democracia, deve ter a liberdade de conduzir sua vida e seus relacionamentos do modo que sentir mais adequado, como algo que diga respeito exclusivamente à sua intimidade e seus vínculos de interesses, afeto, carinho, respeito ao próximo e amor, na sua busca pela felicidade, pouco importando os caminhos escolhidos.

Se uma simples medida administrativa de registro desses relacionamentos pode contribuir para dar dignidade e garantir o sentido de cidadania para algumas pessoas, auxiliando-as na busca da felicidade, então o Estado Democrático de Direito deve facilitar esse caminho e permitir a realização desse direito.

Tenho orgulho de ter participado dessa decisão juntamente com meus colegas de bancada e ter, nesse caso, aprovado a proposta da presidência do CNJ. Parafraseando Milton Nascimento quanto à feliz iniciativa da propositura, até me pergunto: “Como não fui eu que fiz?”.

 


* José Lucio Munhoz é conselheiro do CNJ, juiz do Trabalho, mestre em Direito e ex-presidente da Amatra-SP (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho).

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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