“Eu sou fã da CLT”

10/03/2008 15h11

Com esta declaração a juíza Ione Ramos, que se aposentou recentemente, resume as razões que a levaram a dedicar a maior parte de sua vida à magistratura do trabalho. Em entrevista exclusiva à Ascom, a magistrada conta um pouco dessa experiência.

Ascom - A senhora dedicou praticamente toda a sua vida à Justiça do Trabalho, como magistrada. Depois desse tempo a senhora acredita que ela ainda tem um papel social?

Juíza Ione Ramos - O mote da Justiça do Trabalho sempre foi o capital e o trabalho. Ela tem uma função imprescindível para a paz social, tanto que não conseguiram extingui-la.

Ascom - Naquela briga com o ACM, com a CPI do Judiciário?

I.R. – O ACM e o FMI estavam interessados em acabar com a Justiça do Trabalho, ou seja, os poderosos grupos internacionais, porém trata-se de uma instituição inquebrantável.

Ascom - Muita gente diz que a CLT está caduca e pregam reformas. O que a senhora acha da CLT?

I.R. - Eu sou fã da CLT, tem muitas regras boas que trouxeram avanços para o trabalhador. Em relação ao capítulo destinado à jornada de trabalho, por exemplo, tenho muita admiração. O que se refere à isonomia salarial também. Quando ainda era ainda juíza substituta, julguei uma ação sobre a jornada de 12 por 36 horas e reconheci, já naquela época, a jornada extraordinária a partir da oitava hora diária porque não a considerava lícita. Este fato causou muita alegria para muitos grupos que estavam interessados em ver este direito reconhecido. Mas o que é que se vê hoje? Muitos operadores do direito consideram esta jornada de doze por trinta e seis favorável ao trabalhador. Eu não acho. Principalmente o trabalho realizado em hospitais. Como é que um enfermeiro, por exemplo, vai ter condições de trabalhar 12 horas quando se sabe que na seqüência ele não vai descansar, vai trabalhar em outro emprego para complementar sua remuneração? Quem sofre com isso no fim das contas? É lógico que é o doente que está lá no hospital, no entanto, a jurisprudência passa por uma transformação.

Ascom - A indenização por dano moral na Justiça do Trabalho é um instrumento relativamente novo no Brasil. A senhora acha que ela tem funcionado como inibidor de condutas prejudiciais à saúde dos trabalhadores?

I.R. - Reconheço que está havendo um certo abuso na questão do pedido de indenização por danos morais. Os juízes têm que ter muita acuidade ao examinar a prova, perspicácia suficiente para deferir esta indenização ou não. Algumas ações estão sendo forjadas. Na grande maioria os empregados têm razão. As empresas, em decorrência das inúmeras decisões concernentes às indenizações por danos morais, têm procurado se enquadrar, envidando esforços para que seus empregados não se acidentem.

Ascom - A senhora acha que o valor das indenizações é adequado no Brasil para produzir o efeito pedagógico esperado?

I.R. - Depende de cada caso. Tem casos, por exemplo, em que o empregado está lá trabalhando com uma máquina furadeira, cai num buraco e fica totalmente mutilado. Como é o caso concreto que cheguei a julgar, em que um homem jovem ficou totalmente destruído. Aí não dá para deferir uma indenização com sentido puramente pedagógico. Deve-se procurar arbitrar o valor de acordo com o dano, com a necessidade que o trabalhador vai ter por toda a vida, por conta daquela seqüela.
Alguns juízes deferem pensionamento como complementação da perda da capacidade laborativa. É justo. Eu acho ótimo. Não são todos os juízes que concedem, mas também não são todos os trabalhadores que pedem este tipo de direito. Normalmente, pedem indenização por danos morais e materiais, sem incluir a pensão. Mas para fixar o valor da indenização, não temos uma fórmula estabelecida, nossos códigos não definem isso. Os valores têm que ser ponderados, não podemos aplicar a mesma disposição dos norte-americanos - as indenizações lá são muito altas. Aqui, nosso Direito não permite o enriquecimento do ofendido com o valor da indenização. Tem que levar em conta também a capacidade econômica do empregador, o tempo de serviço, o valor da remuneração quitada ao empregado e a intensidade do dano sofrido com o infortúnio.

Ascom - A senhora fez parte da primeira composição do TRT de Santa Catarina, em 1982. Na época, nosso tribunal era considerado o mais avançado do Brasil, do ponto de vista da defesa dos direitos dos trabalhadores e da própria formulação jurídica. Hoje o tribunal mudou: cresceu em número de juízes e não existem mais classistas. Essas mudanças trouxeram ganhos para os trabalhadores?

I.R. – Sim, houve ganho para a Justiça do Trabalho de um modo geral. Hoje, nós não podemos ver o Estado de Santa Catarina com o olhar que tínhamos na época em que o tribunal era composto por apenas seis juízes togados. Depois, nos anos 90, começaram novas mudanças com a abertura do mercado brasileiro às importações.

Ascom – Foi quando começou a onda neoliberal no Brasil, com propostas de flexibilização, redução do tamanho do Estado, tirar da lei os direitos trabalhistas...

I.R. - E estão tirando devagarinho, não é?

Ascom – A senhora acha que passou a onda neoliberal?

I.R. - Acho que não. Em nível mundial, determinadas nações caminham em direção à pratica de condutas mais responsáveis. Tanto em relação ao respeito aos direitos dos trabalhadores, como em relação ao meio ambiente e a outras preocupações de relevante interesse social. Nesse contexto, penso que o Brasil não está tão ruim.

Ascom – Como foi o começo de sua carreira?

I.R. - Eu me formei em Santa Maria (RS). Era funcionária pública da Universidade Federal de lá. Chegue a fazer o terceiro ano de direito na PUC de Porto Alegre, mas acabei concluindo a graduação em Santa Maria. Depois de um tempo, já formada, fui convidada a trabalhar com o vice-reitor, mas expliquei para ele que estava quase aprovada no concurso para juíza do trabalho. Faltava só a prova oral. Ele perguntou se eu iria assumir se passasse. Eu disse que sim. Entrei em 1971, fiz o concurso em Porto Alegre. Trabalhei em Criciúma, quando fazíamos deslocamentos para Araranguá, em Brusque, Itajaí, Joinville e Florianópolis.

Ascom – O que a fez querer ser juíza?

I.R. - Eu sempre quis ser juíza. Durante a minha graduação fiquei muito encantada com o Direito do Trabalho. Tive aula com sociólogos, jesuítas que moravam em Santa Maria e eram muito avançados. Estudávamos muito sociologia, também economia. O que me fez abraçar a magistratura foi a vontade de aplicar o Direito. E me realizei profissionalmente. O primeiro grau me fascinava. Quando ascendi ao segundo grau, comecei a me sentir meio frustrada, porque perdi o contato com as partes, mas todo juiz sente isso, a perda do contato com as partes, quando chega ao segundo grau.

Ascom - E como é julgar sem ver o olho das partes?

I.R. - Temos que examinar o processo, analisar muito bem as provas que ele contém. Mas aí a experiência da primeira instância ajuda muito. Aqui no tribunal sempre valorizei a decisão do magistrado de primeiro grau, porque o contato direto com as partes é muito importante para revelar os fatos controvertidos no processo.

Ascom - A senhora acha que há instâncias demais no Judiciário brasileiro?

I.R. – Não há. O que existe são muitos meios processuais de o vencido na sentença tentar revê-la.

Ascom - A senhora não acha que a súmula vinculante vai desvalorizar justamente aquele juiz de primeira instância, que vai ter que obedecê-la?

I.R. - Não. O bom juiz não fica assim engessado por uma súmula vinculante. Ele sempre aplicará a sua decisão. O juiz não tem como fugir de sua condição humana, da sua sensibilidade e das suas convicções.

Ascom - O que a senhora diria para um juiz que estivesse tomando posse hoje?

I.R. - Eu apenas diria para que continuasse sendo quem é, vendo que do outro lado tem um simples trabalhador e um empregador; que procure sentir o que sentem aquelas pessoas ali na sua frente. Conselho eu não daria.

 


Fonte: Ascom - 10.03.08

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