"A lei não premia quem paga bem, somente quem paga direito"

Para juiz José Ernesto Manzi, que toma posse nesta sexta-feira (13) no TRT/SC, sistema não incentiva empregador a investir no trabalhador, nem o trabalhador a dedicar-se ao emprego.

12/05/2011 13h05
juiz Manzi


Ver o sofrimento do pai, autor de um processo civil iniciado há 40 anos e até hoje sem solução, foi um dos motivos que levaram o juiz José Ernesto Manzi a ingressar na magistratura. Nesta sexta-feira (13), quando tomar posse como juiz de segundo grau, em solenidade que inicia às 16h15min, na sala de sessões do Tribunal Pleno, Manzi vai dar mais um importante passo em sua trajetória. Passa definitivamente, agora, a decidir de forma colegiada, algo que considera um "amadurecer jurídico e um exercício constante de humildade". Definitivamente, porque vinha atuando como juiz convocado na Corte desde 1996.

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, Manzi tem 21 anos de magistratura. É especialista em Direito Administrativo pela Universidade de Roma, em Processo Civil pela Unoesc de Chapecó e em Processos Constitucionais pela Universidade de Castilla, da Espanha. Também é mestre em Ciência Jurídica pela Univali, de Itajaí, e atualmente cursa Filosofia na UFSC e doutorado em Direitos Sociais, na Universidade de Castilla.

Nesta entrevista concedida à Assessoria de Comunicação Social do TRT/SC, Manzi tratou de temas como fundamentação das decisões, legislação trabalhista, metas para o Judiciário, entre outros. Defendeu punições mais severas para quem desrespeita a legislação trabalhista e criticou o excesso de formalismo que as pequenas empresas encontram para contratar. "A burocracia é tanta que o empregador acaba desistindo de cumprir normas facultativas", disse.

Ascom: O que motivou o senhor a ser um juiz?

Manzi: Comecei a trabalhar com meu pai em um Cartório de Notas, no primeiro ano do ensino médio, e descobri o Direito. Naquela época, cheguei a pensar em ser, um dia, o juiz-corregedor dos Cartórios. Durante a faculdade comecei a aprofundar o desejo de tornar-me juiz, sem cogitar a área trabalhista, principalmente por conta de um processo civil em que meu pai é o autor e que não havia meios de ver solucionado. E olhe que passaram quatro décadas e o processo continua sem solução. Via a angústia de meus pais e queria fazer alguma coisa, ao menos pelos meus semelhantes.

Após uma pós-graduação em Roma, em 1987, fui convidado a dar aulas, primeiro de Direito Tributário, depois de Direito Comercial e, por fim, de Direito do Trabalho, em duas universidades em São Paulo. Cheguei a dar 28 aulas por semana, das quais 10 eram de Direito do Trabalho, o que me obrigou a me aprofundar no tema. Quando vi, estava apaixonado pelo Direito Social e prestando concurso para juiz do trabalho. A falta de um trabalho digno pode estar na gênese de muitos males sociais.

O senhor é conhecido por elaborar decisões com fundamentação bastante farta e, até certo ponto, extensas. Numa época em que o Judiciário vem buscando cada vez mais aumentar sua produtividade, com autoimposição de metas, ainda há espaço para esse tipo de decisão mais longa e estudada?

O Poder Judiciário tem uma responsabilidade imensa: é dele o monopólio da última palavra sobre os atos de todos os cidadãos e também dos outros poderes. Se o juiz não precisasse motivar as decisões judiciais, trocaríamos o arbítrio da parte, pelo arbítrio do juiz. O dever de fundamentar não é meramente formal (apesar de ser princípio constitucional, art. 93, IX), exigindo que o juiz examine criticamente as provas e as normas para fazer suas opções. Mais ainda, para que construa uma decisão que demonstre não apenas como se convenceu, mas que também busque convencer as partes e os operadores jurídicos do acerto de suas escolhas.

A sentença não é um lavar de mãos, uma libertação do juiz, mas seu comprometimento com um resultado justo. As decisões judiciais possuem, ainda, uma finalidade pedagógica que ultrapassa o processo: a rejeição de pedidos legítimos aumenta o descumprimento da lei, enquanto o acolhimento de pedidos ilegítimos aumenta o temor de contratar ou de relacionar-se e o descrédito institucional.

Juiz Manzi

Não acredito em fundamentações genéricas, ainda que a celeridade e a própria compreensão imponham uma limitação máxima da motivação. Esta questão das metas merece reflexão: se é preciso responder às demandas com celeridade, não se pode admitir que o papel do juiz, que é o de aplicar a lei ao caso concreto, implique tanto no esquecimento das peculiaridades da questão, vendo como iguais os desiguais, quanto em “standards” forçados que tornam as sentenças quase tão abstratas e gerais quanto as normas jurídicas que elas visam concretizar.

A Justiça do Trabalho completou 70 anos na semana passada. É possível pensar numa reforma trabalhista sem retrocesso de direitos sociais?

Disse Georges Ripert, com muita propriedade: “Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”. O Direito deve acompanhar a evolução social e cultural de um povo, sob pena, inclusive, de ser ignorado. Quanto mais próximo o Direito estiver do senso comum, maior a possibilidade de ser respeitado. Se é verdade que o princípio da publicidade impede que se alegue ignorância como desculpa pelo descumprimento da lei, a enorme e crescente complexidade do ordenamento jurídico, e até seu distanciamento do senso comum, tornam discutível esse dogma.

O respeito aos Direitos Sociais está na gênese das sociedades desenvolvidas. Crianças com pais bem empregados têm famílias estruturadas e maior possibilidade de obter formação cultural, moral e psicológica adequada. Empregos estáveis permitem a compra de bens de consumo, celebrar contratos de crédito e o desenvolvimento da economia. A precarização é um “tiro no pé”, temos um incipiente mercado interno por conta dos salários baixos. O que considero equivocado é um sistema que torna mais vantajoso dispensar e demitir-se, que não incentiva nem o empregador investir no empregado, nem o empregado dedicar-se ao emprego e, mais ainda, que é tão complexo em sua formalidade, que surpreende até os técnicos e atemoriza os empreendedores. É preciso tornar mais fácil a contratação e incentivar tanto a formação do trabalhador, quanto a sua manutenção no emprego.

A Justiça do Trabalho costuma ser vista pelos pequenos empresários, principalmente quando condenados, como uma espécie de algoz. O senhor entende que deveria existir uma legislação trabalhista específica para as pequenas empresas, na medida em que muitas delas alegam não suportar o rigor da CLT?

Falar que a Justiça do Trabalho é parcial a favor dos empregados é um lugar comum. Falam o mesmo na maioria dos países que possuem uma justiça especializada e considero essa imputação uma falácia grave. Primeiro, porque ela apenas aplica a lei. Depois, porque os processos judiciais representam uma tentativa de reequilibrar o ordenamento jurídico descumprido, não representando senão porção mínima das pretensões resistidas. Todo processo judicial é pedagógico, indica condutas às partes e aos terceiros, mesmo quando essa conduta não é desejável (por exemplo, quando o processo torna vantajoso descumprir a lei). Uma condenação, muitas vezes, representa a correção de uma entre várias irregularidades praticadas. Há empregadores que buscam cumprir rigorosamente a lei e são mal assessorados e tropeçam nas formas, como há empregadores que buscam as brechas na lei para reduzir custos, em prejuízo dos empregados, e existem até empregados e empregadores de má-fé que usam o contrato de trabalho para tentar tirar vantagens ilícitas.

Juiz Manzi em leitura de processo

O que é necessário é reduzir as formalidades ao mínimo e aumentar a penalidade por seu descumprimento ao máximo, ou seja, incentivar cumprimento voluntário de obrigações. Presumir o contrato de experiência pelos primeiros 90 dias ou prefixar uma indenização para imputações de justa causa não demonstradas, como faz o Código Laboral Paraguaio, evitaria um grande número de discussões.

É preciso melhorar o ensino de contabilidade. Por ironia, alguns contadores é que se tornam os grandes algozes de seus contratantes, por exemplo, na questão do salário complessivo, quando incluem numa única parcela de pagamento verbas que não fazem parte do salário-base, como auxílios, gratificações, adicionais e outras formas de remuneração. É uma verdade: a lei não premia quem paga bem, só quem paga direito. A formalidade tem que ser reduzida principalmente para os pequenos empresários: tente fazer o recolhimento do FGTS de sua empregada doméstica e você entenderá que o sistema é feito para incentivar a desistência. A burocracia é tanta que o empregador acaba desistindo de cumprir normas facultativas.

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) montou uma comissão nacional de magistrados para tornar a execução trabalhista mais efetiva. Entre as atribuições, está a elaboração de um anteprojeto de lei que permita incluir o nome do devedor de uma ação trabalhista nos órgãos de proteção ao crédito, como o Serasa. É esse mesmo o caminho?

Eu acho gravíssimo o descumprimento da lei trabalhista e mais grave ainda o descumprimento de decisões judiciais, a começar pelo próprio Estado, que não apenas dá um péssimo exemplo, como considera o resistir às pretensões legítimas uma obrigação do administrador público. Tudo o que incentive o respeito à lei e às decisões judiciais é necessário e bem vindo, inclusive a inscrição no Serasa.

O devedor pode “não dar a mínima” para uma execução trabalhista, mas mudar de ideia quando tiver a emissão de talão de cheques negada ou o cartão de crédito recolhido ou ficar impossibilitado de contratar com o Poder Público. Não é possível considerarmos justa causa o furto de um chocolate (e é justa causa, porque honestidade e confiança não admitem mensuração) e considerarmos mera esperteza ou algo sujeito ao mero pagamento da sobrejornada, a alteração de controles de horário de dezenas ou centenas de empregados. O ideal seria que as condenações judiciais sempre impusessem um “plus” ao crédito originário, que aumentaria a cada grau de jurisdição, isso incentivaria o cumprimento da lei e do contrato. Quanto ao anteprojeto, ouvir os operadores jurídicos para a elaboração de leis é algo desejável, seja porque evita que se tentem criar realidades fictícias e irrealizáveis, seja porque outorga legitimidade democrática à norma. Seria necessário, ainda, que ao Poder Judiciário se permitissem mais proposições legislativas, principalmente para questões que estejam inflando as estatísticas processuais (veja o caso da base de cálculo do adicional de insalubridade, por exemplo).

O Supremo Tribunal Federal (STF) deverá julgar em breve uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), proposta pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), que tem como objeto limitar o poder de investigação do Conselho Nacional de Justiça. Para a AMB e outras associações de classe da magistratura, a prerrogativa de investigar e punir juízes pertence às corregedorias estaduais, cabendo ao CNJ apenas um papel subsidiário. O que o senhor pensa sobre esse assunto?

Falando apenas do que conheço, a Justiça do Trabalho não precisava, a princípio, de um Conselho Nacional de Justiça. Suas Corregedorias Regionais e sua Corregedoria Geral sempre foram atuantes e tomaram medidas rigorosas quando foram chamadas a atuar. Entretanto, não vejo com preocupação uma competência investigativa concorrente do CNJ, para evitar que a inércia ou a ineficiência dos tribunais possam causar a manutenção de membros espúrios no exercício de atividade judicante ou a destruição de provas que pudessem incriminá-los.

O descrédito nos juízes leva ao descrédito na Justiça e o descrédito na Justiça leva ao desrespeito à lei. Acredito, contudo, que a atribuição do CNJ deveria ser subsidiária, ainda que acompanhasse “pari passu” o protocolo e o andamento de qualquer processo disciplinar ou sindicância (contra juízes ou servidores), impondo-se, para tanto, que tais processos fossem eletrônicos. Deveria poder ainda, de forma originária, processar corregedores e administradores judiciários, porque o enlamear de uma única toga, quando não punido com rigor, coloca em cheque a credibilidade de toda instituição judiciária. Aos juízes se impõem, no mínimo, que estejam na média moral do povo, sem o que, podem ter o poder de julgar, mas não terão a autoridade para fazê-lo.

Súmula vinculante combina com independência de julgamento?

Súmula vinculante não combina com a independência, que é atributo essencial da magistratura. O juiz a quem se impõe julgar de determinada forma, violentando-se o seu entendimento, se outorga uma função meramente burocrática. Se o STF pudesse emitir súmulas que vinculassem o agir da Administração Pública e apenas nos processos em que o Príncipe, apesar das sucessivas condenações, insiste em descumprir a lei, o Poder Judiciário já teria seu trabalho reduzido exponencialmente. Os tribunais é que precisariam sumular mais, sobre as questões que lhe são repetidamente submetidas, e os órgãos fracionários observar com rigor essas súmulas, permitindo aos relatores que dessem ou negassem provimento monocraticamente ao apelo que tivesse apenas matéria sumulada. Isso levaria os juízes de primeiro grau a caminhar no mesmo sentido e à celeridade processual.

O mínimo que se exigiria para a edição de uma súmula vinculante seria um estudo apurado, oitiva de especialistas nas matérias, amplo debate acadêmico etc., análise acurada da redação e revisão periódica de seus efeitos. Se as justificativas das súmulas vinculantes são a celeridade e a segurança jurídicas, não se pode permitir arroubos na edição, nem se perder de vista os fins do Poder Judiciário. Em verdade, considero que se à Suprema Corte se desse apenas competência em matéria constitucional, com mandato temporário de seus membros, a celeridade e a segurança jurídicas seriam alcançadas com muito mais eficácia. Na Espanha, por exemplo, o mandato é de nove anos, com renovação de um terço de seus membros, sendo que, a cada um dos três poderes compete indicar um terço dos membros da Corte Constitucional Espanhola.

No final do ano passado, o STF decidiu que a União não pode ser responsabilizada por débitos trabalhistas das empresas terceirizadas que lhe prestam serviço. Essa decisão contrariou inclusive um enunciado do Tribunal Superior do Trabalho amplamente aplicado pelos juízes do trabalho. Qual a sua opinião a respeito disso?

A irresponsabilidade e a incompetência dos administradores públicos no Brasil fazem com que tenhamos uma carga tributária de países nórdicos e um serviço público de terceiro mundo. Nossa infraestrutura é quase inexistente e não se vê a atuação do Estado, ao menos de forma proporcional às necessidades públicas e à tributação. A terceirização pode constituir tanto fator de eficiência, quanto de desvio de dinheiro público (apaniguamento, malferimento da impessoalidade, contratação de empresas inidôneas ou incompetentes, apenas pelo preço etc.). Para começar, entendo que não se justifica que os valores destinados à folha de pagamento dos terceirizados não seja paga diretamente aos destinatários (verbas trabalhistas, previdenciárias e tributárias). Isso já reduziria, em grande escala, o descumprimento das leis. Por outro lado, a terceirização em si deveria ser publicizada, sempre que possível - a União poderia, por exemplo, ter uma empresa de segurança, limpeza etc., com salários dignos e empregados celetistas concursados.

Juiz Manzi

Também é preciso igualar os direitos dos terceirizados e dos empregados contratados diretamente, porque a terceirização é forma de precarização. Há terceirizados ganhando salário mínimo horário proporcional em repartições públicas, quando a justificativa única do terceirizar deveria ser o especializar, e não o precarizar. Por fim, não se pode esquecer que o STF, apesar de ter concluído pela constitucionalidade do parágrafo 1º da Lei n. 8.666/93, não afastou a possibilidade de sua interpretação sistemática com outros dispositivos legais e constitucionais que impõem à Administração Pública contratante o dever de licitar e fiscalizar de forma eficaz a execução do contrato, inclusive quanto ao adimplemento de direitos trabalhistas, de forma que, constatada no caso concreto a violação desse dever fiscalizatório, continua plenamente possível a imputação de responsabilidade subsidiária à Administração Pública.

A Administração tem o dever de fiscalizar “pari passu” o cumprimento de obrigações trabalhistas (inclusive em matéria de medicina e segurança do trabalho), fiscais e previdenciárias. O que se impõe agora ao Judiciário é uma análise acurada e específica, com exame caso a caso, porque não é o mero inadimplemento que gera a responsabilidade subsidiária da Administração e decisões genéricas entrarão em choque com a posição do STF.

O que muda, a partir da sua posse como juiz de 2º grau, em relação ao trabalho que o senhor tem desenvolvido até agora?

Estou substituindo no TRT desde 1996, sendo que, a partir de 2003, com minha vinda para a Capital, de forma mais constante. O que muda é que pretendo organizar e racionalizar o trabalho com maior liberdade, de forma a tornar prestação jurisdicional mais célere, sem prejuízo de sua qualidade, organizando metodicamente o ingresso e a circulação dos processos no Gabinete, além de buscar estancar as causas de retrabalho.

Por outro lado, reconheço que a atuação colegiada é muito diferente da atuação monocrática e muito mais restritiva. O colegiado serve a limitar os arroubos psíquicos e os exageros individuais, além de impor uma meditação mais apurada dos temas (pela própria dialética dos julgamentos) e um amadurecer jurídico pela troca de experiências, além de ser um exercício constante de humildade, ao se ver propostas “perfeitas” serem rejeitadas pela maioria.

Há quem diga que o juiz entre em um Tribunal pretendendo transformá-lo, mas acaba transformado pela Corte... Apresento-me preparado para somar, para caminhar junto aos excelentes membros deste Tribunal (que é um dos melhores do País), sem abdicar de entendimentos, argumentos e ideias. Entretanto, reconhecendo minhas limitações, buscarei não permitir que a falta de bom senso ou de humildade me leve a considerar-me iluminado ou privilegiado na indicação da melhor solução para os casos concretos, ou que a preguiça ou o desejo de agradar me leve a anuir onde negar seria o indicado. Costumo sempre pedir a Deus que Ele faça a sua justiça através ou apesar de mim.

 

Fonte: Assessoria de Comunicação Social do TRT/SC
ascom@trt12.jus.br - (48) 3216.4320

Leia Também: