Entrevista: juíza Mari Eleda Migliorini

“A Justiça plena é uma utopia necessária”

07/08/2009 13h15
Juíza Mari Eleda na cerimônia de posse ao lado da presidente Marta Fabre

A juíza Mari Eleda Migliorini assumiu, nesta sexta-feira (07), uma cadeira no segundo grau de jurisdição do TRT catarinense. A nomeação ocorreu no dia 15 de julho, e ela vai ocupar a vaga deixada pela aposentadoria da juíza Licélia Ribeiro. A solenidade aconteceu na sala de sessões do Tribunal Pleno, no final da tarde de sexta-feira.
 

Para acessar a íntegra do discurso de posse, clique aqui.


Natural de Curitiba (PR), a juíza Mari Eleda ingressou na magistratura trabalhista catarinense em 1989. Tem especialização em Processo Civil pela PUC/RS e mestrado em Ciência Jurídica, pela Univali, no qual defendeu a dissertação, sobre "a teoria da desconsideração da personalidade jurídica diante da autonomia patrimonial da pessoa jurídica".

Em entrevista concedida à Assessoria de Comunicação Social, a juíza falou sobre crise econômica, flexibilização da legislação trabalhista, conciliações e súmulas vinculantes, entre outros assuntos. A magistrada também defende a necessidade da criação de uma legislação específica, no Brasil, para as pequenas empresas.

“Parece razoável, mesmo, pensar que não devem ser tratados igualmente uma empresa de atuação globalizada, com seus milhares de empregados, e o dono de uma pequena oficina, por exemplo, que trabalha no negócio com mais dois ou três empregados”.

Leia a entrevista e conheça um pouco das idéias da nova juíza do TRT/SC.

Ascom: O que motivou a senhora a ser uma juíza?

Juíza Mari Eleda: Tive influências muito próximas de um amigo de meu pai, advogado, cujo escritório me servia para estudos, na fase anterior à faculdade. Ali tive contatos não formais com as coisas da área jurídica e esse amigo, já falecido, falava-me sobre a carreira de magistrado, sua relevância etc. Creio que acabei influenciada.


A crise econômica mundial levou alguns sindicatos de trabalhadores a aceitarem acordos polêmicos, que incluíram redução, simultânea, de jornada de trabalho e salários. Qual a opinião da senhora sobre isso?

Na década de 90, na FURB, em Blumenau, assisti a uma palestra de um professor português. Ele se declarava claramente marxista, vinculado aos movimentos da Revolução dos Cravos. Ao final da palestra, foi-lhe feita uma pergunta assim: “O que o senhor pensa da redução de jornada que está sendo feita na companhia telefônica da França (não lembro o nome da companhia francesa da época e que foi mencionada na pergunta ), para manter os empregos?”.

Respondeu ele, em linhas gerais, que se as condições de competitividade da companhia francesa ficassem prejudicadas pela medida, frente às demais companhias européias, não deveria ser adotada, pois poderia significar, com a União Européia, não a perda de alguns empregos pelos franceses, mas a transferência de todos os empregos para outros países da União. Espantei-me com a lógica do professor, calcada numa visão da União Européia que hoje deve ser aplicada ao mundo globalizado.

Mas achei curioso que ele fundamentava sua resposta em Marx, deslocando o enfoque do individual para o social. Para ele, a preservação da companhia e do que fosse possível e necessário, em termos de empregos, significava permitir que a empresa - a unidade produtiva – continuasse a existir para cumprir sua função social. Quer dizer, ele fazia uma mistura de visões, aproveitando-se do capitalismo e do marxismo, para repensar as coisas segundo o momento de realidade que estava sendo vivido pelos europeus.

No século passado, o Direito fez uma evolução importante do viés “individual”, marca do liberalismo, para o “social”, onde só os direitos fundamentais – as liberdades, a vida, a propriedade socialmente considerada - , continuaram a merecer o zelo intransigente da defesa do Estado, e frente ao Estado, orientada pela ótica individual. No mais, a ótica coletiva ou social é que deve preponderar.

Sob essa ótica, vejo os acordos sindicais mencionados na pergunta em sintonia com os princípios da solidariedade e da razoabilidade e com as condições de realidade. Eles buscam salvaguardar os empregos de todos, abandonando a visão individualista, e preocupam-se com a competitividade, indispensável para a preservação da empresa (não do empresário, uma confusão que fazemos muitas vezes) e dos empregos.
 

juíza Mari Eleda em gabinete, com estante com livros atrás


A Justiça do Trabalho costuma ser vista pelos pequenos empresários, principalmente quando são condenados, como uma espécie de algoz. A senhora entende que deveria existir uma legislação trabalhista específica para as pequenas empresas, na medida em que muitas delas não conseguem suportar o rigor da CLT, originalmente criada para conter a superexploração do trabalho de 60 anos atrás?

Concordo inteiramente com a especificidade de leis para pequenas empresas.

A prática dos países nórdicos, com as quais tive contato em meu mestrado, é interessantíssima. Em primeiro lugar, há um prestigiamento real das negociações coletivas. E esse prestigiamento é tanto maior quanto mais ele representa o interesse de empregados e empresários vinculados a uma unidade produtiva.

Assim, aquilo que chamamos de acordo coletivo no Brasil, e que contempla a realidade e interesses específicos de uma empresa e de seus empregados, é o elemento mais prestigiado do ordenamento jurídico para regular as condições gerais de trabalho, observados naturalmente os balizamentos mínimos postos pela lei.

Essa técnica de regulação, em que o legislador se ocupa dos mínimos e onde conquistas e retrocessos ficam na dependência das negociações coletivas, permite uma adaptabilidade invejável das condições das relações de emprego às condições do ambiente em que a empresa, como unidade produtiva, tem de competir.

O Brasil já tem o tratamento diferenciado das pequenas empresas sob vários aspectos. No Direito do Trabalho, muitos magistrados aplicam as normas atendendo, em parte, a essa reivindicação. No discurso de adequação da norma ao caso concreto, é possível introduzir as matizações necessárias, pois me parece razoável, mesmo, pensar que não devem ser tratados igualmente uma empresa de atuação globalizada, com seus milhares de empregados, e o dono de uma pequena oficina, por exemplo, que trabalha no negócio com mais dois ou três empregados.

Mas o ideal seria uma melhor especificação da lei, porque nosso regime jurídico é estatutário.


Muitos economistas entendem que a flexibilização da legislação trabalhista poderia trazer para formalidade muitos trabalhadores que se encontram, hoje, excluídos do manto protetor social. Outros dizem que isso seria uma forma de precarizar ainda mais as relações de trabalho, acentuando a desigualdade de renda no País. O que a senhora pensa disso?

Respeito a Economia como ciência, um ramo de saber que admiro mas sobre o qual pouco sei.

Parece-me que os economistas estão mais gabaritados, do ponto de vista científico, para afirmar alguma coisa sobre os efeitos da flexibilização na geração de emprego formal. E, inclusive, sobre se há, implícita, a precarização das relações ou não. Eles devem ser instados a manifestar-se também sobre isso.

Assim juristas e economistas alinhariam um conceito para flexibilização, uma questão chave, pois os juristas aceitam a flexibilização sem precarização.

Por outro viés, e como demonstram as práticas de Espanha, França e Itália, por exemplo, a flexibilização é condição para a preservação dos empregos formais existentes.

No meio jurídico trabalhista brasileiro , o temor da deterioração levou muitos teóricos e operadores do direito a postarem-se contra a flexibilização. Mas o pior cenário é o imposto pela realidade, como aconteceu nos últimos meses, sem que se admitam ajustamentos para enfrentar as dificuldades.

Num cenário assim agudo, é mais fácil aceitar ajustes, às vezes amargos, nas relações de emprego. Veja-se o caso da GM nos Estados Unidos.

Mas num cenário, digamos, de normalidade, a necessidade de adaptação do ente empresarial às condições do mercado é menos perceptível. Exemplo: o chamado banco de horas. Doutrina e jurisprudência têm negado sua instituição, no Brasil, segundo a abertura feita pelo legislador (um ano). Na Europa, os contratos coletivos podem instituí-los em moldes até mais abertos. O orario multiperiodale, na Itália, e os cycle e modulation, da França, são os mecanismo adotados.

Por isso entendo que, com a presença da Justiça do Trabalho e com a organização atual dos Sindicatos, podem e devem ser consideradas e estudadas as práticas de flexibilização que otimizem as condições de atuação da empresa e o acesso das pessoas a relações formais de emprego. Sem precarização.

Existe uma campanha intensa do Conselho Nacional de Justiça no sentido de promover a conciliação nas ações judiciais. Esse é o melhor caminho mesmo para desafogar o Judiciário? Ou esse apelo pela conciliação pode acabar levando, no caso da Justiça do Trabalho, o autor da ação a abrir mão de direitos que, em outro contexto, não abriria?

Na Justiça do Trabalho, a conciliação sempre foi um mandamento e um pressuposto do processo válido. O juiz do trabalho tem o dever de utilizar seu poder de persuasão, diz a CLT desde 1943, para levar as partes a conciliar. A campanha do CNJ faz sentido porque a conciliação prévia entrou no CPC há pouco tempo. Os juízes de outros ramos precisam habituar-se a buscá-la.

Por outro lado, conciliação envolve mesmo a possibilidade de alguma perda de quem demanda e do pagamento do “não devido” pelo demandado, pois pagará sem esperar que uma sentença estabeleça a obrigação. Ao contrário do que muitos pensam, são muitas as sentenças de improcedência e, nesses casos, o réu, se concilia, está pagando o que não deve.

Na Argentina, a fase conciliatória prévia, extrajudicial, é condição da ação. No Brasil, como a conciliação é feita diante do magistrado, os riscos de acordos abusivos são muito menores. E, todos sabemos, muitos acordos não são homologados porque o magistrado entende que a transação supera os limites do razoável.

No fundo, a conciliação ocupa-se da pacificação social, ou seja, põe em primeiro plano o social, e trata secundariamente o individual. Portanto, uma verdadeira visão social promove a pacificação, pela via conciliatória, em sintonia com o comando da CLT.

juíza Mari Eleda em gabinete, com estante com livros atrás

A senhora entende que as súmulas vinculantes, de certa forma, ferem a independência de julgamento do magistrado, já que ele pode evitar proferir uma sentença que não produzirá efeitos?

As visões sobre as súmulas vinculantes são muito diferentes. O livre convencimento não significa que o juiz pode decidir de qualquer forma. O juiz aplica a norma e, ao adequá-la para atender às especificidades do caso concreto, deve fundamentar tal operação. As possibilidades interpretativas de qualquer texto, acentuada originalmente por Hart, geram espaços para tratamentos não isonômicos das pessoas, fato que a ordem jurídica, de todos os matizes, repudia.

Os mecanismos tradicionais para evitar esse problema não costumam ser contestados, como o recurso de revista na Justiça do Trabalho. Mas, sem dúvida, há matérias sobre as quais é preciso estabelecer mecanismos mais efetivos, com força vinculante, para evitar o alongamento de processos, o entupimento dos canais judiciais e a insegurança jurídica. Notadamente na interpretação da constituição.

Por outro lado, vivemos num Brasil em que, entre escândalos e outros problemas, as instituições têm se mostrado fortes o suficiente para se descolarem dos ocupantes dos órgãos e seus problemas. Essa estabilidade institucional permite tentar, sim, o estabelecimento de mecanismos, também institucionais, que assegurem o tratamento isonômico dos brasileiros, independentemente de onde se encontrem no espaço geográfico do Estado.

O constitucionalismo evoluiu, nas democracias mais sólidas, para a imposição das visões das Cortes Constitucionais e, em muitos casos, tais Cortes nem fazem parte do Poder Judiciário, como na Alemanha. Na realidade, reforça-se o prestígio da Carta Magna e promove-se a segurança jurídica.

Na União Européia, as diretivas expedidas pela Corte da União vinculam os juízes de todos os países. E elas podem ser suscitadas pelos interessados de qualquer país a respeito da interpretação que deve ser dada às normas atinentes aos direitos fundamentais.

Nos Estados Unidos, onde vige a primeira e mais antiga constituição, todas as decisões da Suprema Corte, expedidas por maioria qualificada (2/3), vinculam os poderes. Ou seja, assemelham-se nos efeitos às nossas súmulas vinculantes. Pelo que sei, o Congresso teria a faculdade de alterá-las, mas isso nunca aconteceu.

O fato concreto é que o Poder Judiciário, no Brasil, está atraindo para si determinadas definições, quando muito relevantes para a vida nacional. E agora tem ferramental para essas orientações. Por isso vejo com otimismo a presença desse novo mecanismo no Brasil. E não me sinto tolhida no exercício da jurisdição pelo fato de sua existência. Posso estar equivocada, mas olhando o que acontece em outros países, onde as instituições são muito prestigiadas, penso que o Brasil pode caminhar na mesma direção e fazer a utilização correta desse novo instituto constitucional.
 

Os juízes de primeiro grau costumam ter um contato mais direto com as partes, em razão das audiências. No segundo grau, isso quase desaparece por completo. Esse afastamento beneficia ou prejudica o convencimento do magistrado ao decidir uma causa?

Ao chegar ao segundo grau, o magistrado traz uma imensa experiência que não se apaga com a promoção. Não creio que o afastamento das audiências de instrução e julgamento comprometa a atuação do magistrado guindado ao Tribunal.

Ao contrário. O magistrado de segundo grau sofre o impacto da atuação num colegiado e “repensa” muitas coisas. No primeiro grau, convive-se com as próprias decisões, o modo seu de ver as coisas e de proceder. O segundo grau expõe o julgador à riqueza das visões dos inúmeros colegas de primeiro grau. Há casos em que fundamentos ricos e bem elaborados contrariam posições defendidas há anos, às vezes de maneira já não mais refletida.

Receber, semanalmente, uma avalanche de processos, como relator e revisor, tendo de entender o pensamento dos colegas e de confrontar as visões dos demais componentes julgadores da turma ou câmara, impõe um “re-refletir” constante dos temas e traz um enriquecimento do próprio pensamento e da capacidade de decidir.

Uma das diferenças marcantes que se têm verificado entre os julgamentos de primeiro e segundo grau diz respeito ao valor das indenizações por dano moral. Não é raro observar, por exemplo, os juízes da corte reduzirem em seus acórdãos os valores arbitrados pelos magistrados de primeiro grau. Como a senhora analisa essa questão?

O contrário também acontece. Há indenizações que são aumentadas. Aliás, em sua pergunta, há uma dicotomia entre primeiro e segundo grau e a sugestão de que o primeiro grau concede mais e o segundo grau menos. Isso não corresponde à realidade. Mesmo na Corte, observam-se diferenças entre as diversas composições julgadoras, algumas tendendo a maior concessão, outras a menor. E os juízes de primeiro grau, igualmente, podem ser distribuídos entre os que trabalham com padrões maiores ou menores na fixação das indenizações.

O importante, sob o ponto de vista jurídico, é que isso é da natureza da aplicação do Direito. A filosofia do Direito tem trabalhado intensamente para estipular mecanismos de aplicação normativa. É uma tarefa difícil e que deve ser feita com muito cuidado, para não ferir princípios de atuação do magistrado relevantes para a segurança jurídica.

Por outro lado, penso que o caráter pedagógico da indenização constitui fundamento bastante para impor o ônus ao mau empregador, mas não fundamenta adequadamente o acréscimo patrimonial desproporcional de quem demanda. Se fosse possível distinguir, destinando a indenização “pedagógica” à sustentação de políticas de difusão de boas práticas pelos empregadores, com caráter preventivo, parece-me que haveria melhor suporte jurídico para a imposição da indenização.

O juiz Gracio Petrone, último assumir uma cadeira no Pleno, afirmou que, embora estivesse plenamente realizado na profissão, seu trabalho como juiz, ao longo dos anos, não atendeu os anseios totais da sociedade. Ele credita isso ao próprio ser humano - falho por natureza -  e também à complexidade do mundo. A Justiça plena é uma utopia?

É uma utopia necessária. A justiça plena, se existisse, teria de ser mutante. É da nossa natureza o aperfeiçoamento permanente. Quando estagnarmos, a humanidade estará comprometida.

A justiça formal de Kelsen – justiça é aplicar a norma –, que tanto encantou os juristas da primeira metade do século passado, há muito se esgotou, juntamente com o positivismo jurídico. A idéia kantiana do “universal e permanente”, como baliza para o comportamento, esboroou-se com o jusnaturalismo.

O desafio de fazer conviver as diferenças, às vezes tão notórias, reduziu o espaço do “universal” a nada, ou quase. Habermas virou de ponta-cabeça a idéia kantiana, das normas universalmente válidas a priori, ligando a validade das normas a um princípio de universalização pelo qual, somente a posteriori e respeitados os envolvidos, se pode chancelar a norma.

Portanto, o sonho da justiça plena deve estar aí, permanentemente, como um desafio a ser perseguido.

Sinto-me plenamente realizada ao participar, como magistrada, dessa construção de todo dia. E tenho, segundo a lógica do professor português a que me referi no início desta entrevista, procurado orientar minha atuação como magistrada pelo social, não pelo individual.

Felizmente, sou magistrada da atual ordem Constitucional. Nasci, como magistrada, sob a Constituição que aí está e no Estado Constitucional de Direito por ela posto e que me tem permitido atuar segundo essa lógica, atenta sempre aos valores postos pelo constituinte originário no art 1º, inciso IV: os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Toda decisão deve promover, segundo Konrad Hesse, os núcleos básicos de tais valores e nenhuma decisão pode ser legítima se nulificar qualquer deles.

A senhora deu aulas de balé durante a faculdade. Ainda pratica?

Sou formada em balé clássico e moderno e dei aulas durante quatro anos. Tenho ótimas recordações. Voltei recentemente às aulas práticas de manutenção, um excelente relaxamento para o trabalho gratificante, mas estressante, da magistratura.

Leia Também: